Então os fariseus saíram
e fizeram um plano, a fim de apanha-lo numa cilada, fazendo-o falar. Enviam-lhe
seus discípulos, com os herodianos, para lhes dizer: Mestre, sabemos que és
sincero e ensinas os caminhos de Deus com toda tua verdade, sem deixar-te
influenciar por quem quer que seja, pois não fazes acepção de pessoas. Dize-nos, pois, qual é o teu parecer: É
permitido pagar o tributo a César, sim ou não?
Mas Jesus,
percebendo-lhe a malicia, disse: Hipócritas! Por que me armais uma cilada?
Mostrai-me a moeda que serve para pagar o tributo. Eles lhes apresentaram a
moeda de prata. Ele lhes disse: De que são esta esfinge e esta inscrição? Eles responderam:
“De César”. Então Ele lhes disse: Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus,
o que é de Deus. A essas palavras, eles ficaram estupefatos e, deixando-o, se
retiraram.
O que é de César a César... O que é mesmo de César?
Edmilson Schinelo
Biblista popular e assessor do CEBI
Adital
12 de outubro de 2011
Um plano bem armado: fazer Jesus cair
na armadilha de suas próprias palavras! A cilada é introduzida por um elogio
que é, ao mesmo tempo, reconhecimento de integridade: "Mestre, sabemos que
és verdadeiro, que ensinas o caminho de Deus... que não consideras as pessoas
pela aparência..." (v. 16). Depois do elogio, a pergunta: "É lícito
ou não pagar o imposto a César?"
Em caso de resposta afirmativa, toda a
pregação de Jesus cairia por terra diante do povo. A ocupação romana era o que
havia de mais explorador, a transferência de impostos para Roma era elemento
provocador de miséria e fome. Além disso, do ponto de vista religioso, pagar o
imposto significava aceitar o culto ao imperador. Na própria moeda, podia-se
ler: Tibério César, Filho do Divino Augusto. Por isso, os fariseus
e a maioria do povo se opunham ao pagamento.
Por outro lado, se Jesus responde que
não se deve pagar o tributo, é apanhado em atitude aberta de afronta ao
império. Os próprios herodianos, favoráveis ao pagamento do tributo e a serviço
dos romanos, ali estavam para o flagrante.
A resposta de Jesus desmascara qualquer
religião fetichista e legitimadora do sistema, seja a divulgada pela propaganda
imperialista, seja a alimentada pelas autoridades judaicas (no texto,
representadas pelos fariseus). É possível que Jesus tenha tocado no coração do
sistema religioso romano: o lucro proveniente da cobrança do tributo imposta às
províncias conquistadas por Roma. Ao questionar o caráter divino do imperador,
todo culto a ele prestado (leia-se: submissão, oferenda e pagamento do tributo)
está deslegitimado.
Mas também está desautorizada e
ridicularizada a prática de boa parte das lideranças judaicas, que mantinham
duplo comportamento. Desejavam a expulsão dos dominadores, ao mesmo tempo em
que reproduziam a dominação ou usufruíam das benesses propiciadas pela
ocupação, incluindo o sistema de cobrança do tributo: ainda que a maior parte
dos impostos fosse repassada a Roma, as elites alimentavam seu luxo com o que
retinham do montante arrecadado pelos malvistos cobradores de impostos. Se, por
um lado, as autoridades judaicas negavam-se a oferecer incenso ao divino César,
por outro, eram beneficiadas com tal divinização.
Pagar ou devolver?
O texto de Mateus, seguindo a versão de
Marcos (Mc 12,13), coloca juntos fariseus e herodianos. A narrativa de Lucas
opta por classificá-los: "espiões que se fingiam de justos"
(cf Lc 20,20). O interessante é que enquanto os falsos justos perguntam
se é lícito ou não "pagar" (em grego, é o verbodídomi) o
tributo a César, Jesus responde com outra concepção de justiça: usa o mesmo
verbo, mas acrescentando um prefixo (apo) que dá uma ênfase diferente: não
se trata de pagar, mas de devolver, como pode ser
traduzido o termo apodídomi.
Se na moeda está a imagem (literalmente
a epígrafe) do seu proprietário, o dinheiro pertence ao opressor romano
e é preciso devolver a ele. Como gosta de afirmar Gustavo
Gutierrez, "se na pergunta dos fariseus está implícita a possibilidade de
não pagar o tributo, também está a de ficar, nesse caso, com o dinheiro".
Jesus supera o pretenso nacionalismo dos fariseus, vai à raiz: "é preciso
erradicar toda dependência do dinheiro. Não basta romper com o domínio político
estrangeiro, é necessário romper a opressão que nasce do apego ao dinheiro e de
suas possibilidades de exploração dos demais" (O Deus da vida.
São Paulo: Loyola, 1990. p. 87-88).
Fazendo uso do imperativo, a comunidade
de Mateus mantém enfática a resposta de Jesus: devolvam ao
imperador o que lhe é devido; e, da mesma forma, a Deus o que é de Deus! No
Sermão da Montanha, a comunidade já havia lembrado: Não se pode servir a dois
senhores, não há como servir a Deus e ao dinheiro (Mateus 6,24). O culto a Deus
não se coaduna com o culto a Mamon, aqui representado pelo sistema
do império romano.
Mas o que é mesmo de
César? E o que é de Deus?
Neste "a César o que é de César e
a Deus o que é de Deus" ainda cabe a pergunta: o que mais é de César e o
que é de Deus?
Em terra ocupada, toda a população
sabia que além do denário, também era de César o procurador da Judéia, nomeado
pelo próprio imperador. Eram de César os exércitos invasores. "A César o
que é de César" inclui, portanto, todo o anseio de libertação. O clássico
texto de Marcos 5,1-20 já tinha descrito, através da imagem dos porcos
lançando-se ao mar, o mesmo desejo: a legião(termo militar para
designar uma corporação de soldados) volta pelo caminho de onde veio, o mar
(pelo Mediterrâneo chegavam os exércitos de Cesar). Da mesma forma que no Êxodo
o mar havia engolido os cavalos do faraó e a opressão do Egito foi vencida, a
comunidade espera que os porcos do império sejam devolvidos ao mar. É o que
pode também ser lido no "Devolvam a César o que é de César".
Em contrapartida, o que mesmo é de
Deus? Conforme Levítico 25,23, a terra pertence a Deus, o povo é nela hóspede.
Logo, não pode a terra ser tomada por outra divindade, o império romano. O
povo, em última instância, é o "povo de Deus", com ele Deus fez aliança
(Josué 24). A liberdade do povo é dom de Deus!
Cumprir a sugestão de
Jesus pode nos trazer riscos
Há que se repetir que o processo de
divinização de Jesus feito pelas comunidades é implícita (ou até mesmo
explícita) oposição à divinização do imperador. Isso nos permite afirmar que o
movimento de Jesus, ou pelo menos a leitura que dele se fez na segunda metade
do primeiro século, traz em si forte reação antiimperialista. E se reconhecemos
que a teologia imperial romana era, de fato, o centro ideológico do poder
imperial, seu coração teológico, devemos admitir também que a comunidade cristã
entendeu que proclamar Jesus Cristo como filho de Deus significava
deliberadamente negar a César o seu mais alto título.
Consequências viriam... Não por menos,
tantas lideranças tiveram a mesma sorte de Jesus, A essa altura, só restaria
mesmo a um camponês de periferia, já considerado blasfemo pelas autoridades
religiosas de seu povo (Marcos 14,60-64), ser condenado como malfeitor (Lucas
23,33-34). Como o próprio Jesus, as comunidades experimentariam que não é
simples "devolver a César o que é de César". O império não costuma
aceitar.